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A Vida Mais Difícil

E eu que ainda estou pior?

18/Jul/2020
4 minutos

Está em todos os lugares, em todos os momentos, a espera do menor sinal para que possa começar. Engano seu se acha que não tá por dentro, todos nós temos esse chip já instalado de fábrica.

Falo dessa competição implícita na humanidade que participamos e não vemos a hora da próxima rodada começar.

Escrevo porque, apesar de suspeitar que existe há séculos, percebo uma certa intensificação ultimamente.

Pelo bem do método científico, comprove a minha hipótese e da próxima vez que estiver num encontro com os amigos – quando e se sua árdua vida permitir – experimente dizer “terei um dia puxado amanhã”. Certamente, em menos de duas frações de segundos, escutará um “meu mês está puxadíssimo” seguido por uma “não como desde quarta-feira”.

Ouse dizer: “estou com um caroço na virilha” e aprecie o pandemônio rolar pelos próximos quinze minutos até alguém explicar como desenganou a medicina oriental e adquiriu o que a comunidade científica chama de “câncer 3.0”.

Mais cedo ou mais tarde a conversa se encaminhará para uma desinteressante espécie de competição pelo título de “vida mais difícil do recinto”. É uma competição levada à sério, a tal ponto que chegamos a nos ofender quando alguém diz explicitamente que tem a vida mais difícil do que a nossa.

A única explicação razoável é que extrapola o consciente humano e, assim como uma ressaca cavalar após 12 doses de cachaça, não conseguimos controlar. Sempre tem alguém que consegue ser mais infeliz, mais doente, mais esfaqueado, mais tomador de cloroquina e até mais burro… logo ali, depois do posto ipiranga.

É historinha triste atrás de historinha triste. Um chororô sem fim de sofrimento que é frequentemente confundido com importância e superação, estimulando a arte de transparecer ter uma vida ainda mais sofrida.

Todo mundo tá sofrendo dores que ninguém sabe, lutando batalhas que ninguém vê. Enfrentando seus próprios demônios. ISSO NÃO É UMA COMPETIÇÃO valendo 10 mil reais em barras de ouro.

Não quero desmerecer o sofrimento alheio. Quem sou eu, do alto do meu acumulado de privilégios para negar isso? Não é que ninguém tem uma vida sofrida. É o oposto, todos temos, cada um da sua maneira. O que faz da empatia um atributo ainda mais indispensável para o convívio pacífico.

A pergunta mais apropriada a fazer talvez seria “se a vida das pessoas é tão amargurada quanto dizem, por que nunca perdem uma única oportunidade de se gabar disso?”

Acredito que a os fatores superação e resiliência devem dar uma temperada legal nos episódios dessa série interminável de drama.

A pessoa não pode descobrir que tá sendo chifrada há três anos e meio pelo melhor amigo que começa um lenga-lenga medonho. Não pode ver meia barata na pizza que tá comendo que começa a sofrência.

Não pode participar de uma mísera reuniãozinha que já enche o peito vangloriar (?!) disso. O que não soa nada além de cômico já que minha experiência provou, matematicamente, que algo em torno de 22% das reuniões servem apenas para marcar a próxima reunião, 30% são de descontração, afinal, a reunião foi/vai ser exaustiva e os outros 74% restantes servem para fazer com que todos os participantes pareçam mais ocupados e importantes.

Ao que parece, a unidade de medida reunião/tempo é ótima pra medir o sofrimento de alguém:

Duas reuniões em um dia = perdedor. Oito só antes do almoço = nível Anne Frank.

Sorte do twitter. Tá pra existir ferramenta que explore mais o desespero inesgotável para ter a vida difícil do que o twitter.

Outro dia, fui obrigado a saber que um infeliz dormiu de roupa e acordou pelado. Olha o desespero do rapaz pra chamar atenção! Em outra ocasião, descobri que o inesquecível hitwhat is love” é excelente para das uns beijinhos. O que, apesar de indiscutivelmente dançante, não acho que seja apropriado para umas beiçadas.

Mas, honestamente, não dou a mínima. O que me chamou atenção foi essa necessidade de ser o centro das atenções. Quer chamar atenção? Vai desprotegido para uma aglomeração no meio da maior pandemia que o mundo já viu nos últimos 100 anos.

Conforme-se, o único momento que sua vida seria interessante seria se você virasse youtuber de como assassinar alguém com cacos de vidro por meio de exemplos ou se ganhasse na loteria três vezes seguidas sem ter apostado. Caso contrário, ninguém quer saber. Supere.

Num mundo onde estresse e burnout são sinais de status e descanso significa vagabundagem. Ter uma vida difícil transformou-se não apenas numa obsessão, mas num símbolo de status e a competição de choro das pitangas é uma consequência certa.

Uma competição constante para saber quem está vivendo no modo mais hard cuja intenção é provar pra todo mundo que você tem a vida mais complicada e árdua e ser o campeão da rodada.

Ao vencedor, o direito adquirido de abrir um sorriso, coçar levemente a barriga em movimentos circulares e fazer um discurso curto, silencioso e imaginário agradecendo todas as pessoas que contribuíram no processo de deixar a vida dele ainda mais miserável.

Para você, campeão, meus sinceros parabéns.

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