Eu nunca fui um amante automobilístico. Começa por aí. Confundia palio com gol, fusca com kombi. Era daí pra pior.
Pra ser sincero, não me incomodava muito. O problema é que isso colocava em xeque qualquer heterossexualidade frágil na década de 90, né? Como assim um homem não entender sobre carros? Só pode ser gay! A lógica funcionava mais ou menos assim: um dia o cara não manja de carros, no outro dia tá se atracando com outros caras que também não manjam de carros.
E eu ali, já cansado de anos de humilhação e no auge da pré-adolescência — quando a auto-estima é super sensível e tal — resolvi pedir ajuda a uma pessoa que entendia muito mais do que eu.
Minha irmã topou a tarefa na hora. Mas tinha que ser escondido, né? Se a turma soubesse que eu tava aprendendo de carro com uma mulher, eu ia virar chacota. Minha masculinidade não podia correr esse risco, já tava por um triz.
E se você não se lembra o quão retrô era a década de 90. Deixa eu te lembrar da lástima. Pra começar, o humor do Zorra Total era basicamente tirar sarro do gay. A gente ria da do Pitibicha, da Vera-Verão, do Olha a Faca (que nem gay era, eu acho. Era só uma voz extremamente irritante ameaçando esfaquear as pessoas). O pior é que isso fazia sucesso danado. A gente via a criançada repetir isso tudo no colégio.
Ao mesmo tempo, não existia gay nas novelas e nem nada disso. Gay tinha que ser só pro humor. Essa era a realidade da pauta LGBT na época. Triste, mas era assim.
Enfim. Me submeti a períodos longos de treinamentos intensos. Foram meses e meses nomeando os carros tudo que eu via pela frente. Não foi fácil, mas depois de algum tempo, consegui diferenciar a maioria dos carros. Pajero, gol, crossfox, chevette. Descobri o que era aerofólio. Joguei Need For Speed. Manjava disso tudo, já. Alguns eu demorava um pouco mais, mas em termos gerais eu me sentia bastante satisfeito com o resultado.
Só que tinham dois carros que foram sempre meu calcanhar-de-Aquiles. Saber diferenciar o astra e o vectra era muito difícil. Não só pra mim. Já vi muito conhecedor de carro, macaco velho mesmo, tendo a reputação jogada no lixo por conta deles. Saber diferenciar os dois era basicamente o que separava o homem do menino.
Pra quem não sabe, o astra e o vectra eram praticamente irmãos siameses da Chevrolet. O mais puro sintoma da falta de criatividade dos engenheiros da montadora. Não é atoa que a Chevrolet não tá na fórmula 1. Diferentemente da Renault.
Eis que certo dia, sei lá, numa quarta qualquer, eu lá voltando pra casa, vejo dois carros da Chevrolet estacionados de frente pra mim. De imediato eu assimilei a missão divina. Era bem óbvia, até: Deus queria me qualificar ali mesmo, na própria rua que eu nasci e me criei, como um macho digno e merecedor.
Se parar pra pensar, é bem simbólico. Ali, na porta de casa. Tipo o Brasil sendo campeão no Maracanã. A torcida indo à loucura.
Eles tavam assim a uns 20 metros. Tempo suficiente para diferenciar. E naqueles 10 segundos que me separavam da glória divina, analisei milimetricamente cada detalhe: o farol do astra é assim, o aerofólio do vectra é assado, para-choques. Toda a engenharia aerodinâmica. Nada tiraria de mim o direito de me juntar, merecidamente, a sociedade masculina.
Já sem qualquer dúvida pairando na minha cabeça, declarei com a certeza peculiar aos vitoriosos: o primeiro é um astra e o segundo é um vectra.
Me senti abraçado pelos louros da fama. Questão de tempo pra que o verbo corresse toda a rua. Aquele lugar no panteão divino era meu. Passei pelos carros e li os letreiros nas traseiras: eram dois corsas.