Gentes, eu pequei.
Certamente, esse episódio moldou meu caráter e me marcará eternamente. Não me orgulho e nem me envergonho, pelo contrário. Eu era apenas uma pequenina pessoa cabeçuda.
Antes de mais nada, peço desculpa aos católicos e a todos os outros que atribuem um significado sagrado ao pãozinho insosso.
Não pretendo aqui estimular essa categoria de comportamento. Portanto não repitam isso em casa sem a aprovação de um maior responsável. Havendo aprovação, vá fundo. O céu é o limite.
Sem mais delongas, explicarei tintim por tintim…
Tudo começa nos idos de 2002. Os embalos de Avril Lavigne e Creed tomavam conta do nosso toca fita e só se falava de Senhor dos Anéis nas rodinhas de conversa – vai, Neo!
A semana se passava como qualquer outra até que um anúncio nublou os ares drasticamente.
Ocorreria uma cerimônia religiosa no ginásio do colégio com direito a padres, bíblias, sermões e, como devem suspeitar, hóstias. Muitas hóstias. Celebrariam alguma morte de alguém com algum feito digno de alguma homenagem.
Um púlpito foi montado e cadeiras foram distribuídas por toda a área que, por inúmeras vezes, serviu de palco para minhas façanhas futebolísticas.
O sermão ocorreu sem eventos que mereçam destaque. O padre cantou o que tinha que cantar, dançou o que tinha que dançar e celebrou o que tinha que celebrar.
Era hora da comunhão e não sabia bem como funcionava. Alguns, dignos, tinham o direito a comes e bebes. Amigos meus percorreram o corredor em direção ao padre e receberam os comestíveis. Pela índole dos meus amigos, deduzo que esse direito é dado de acordo com a quantidade de vezes que faziam bullying.
Era o encerramento, o meu momento de glória, o meu grand finale.
Eu, consciente que sou, permaneci imóvel, perfeitamente penteado e elegantemente sentado aguardando o final da missa para poder saciar minha fome.
Inocentemente, ignorava a arapuca que as teias do destino armavam para mim.
Subitamente, sou cutucado e me sugerem receber a hóstia do padre. Prontamente, recuso a sugestão como o bom samaritano que sou. “Não sou digno”, retruco sem dar espaço para réplicas.
Instantes depois, outro amigo me recomendou o mesmo. Não nego, demorei um pouco mais para recusar a segunda proposta.
Pouco após, eu me encontrava no centro de um couro uníssono me estimulando a receber a comunhão.
Junto ao coral de vozes, sobre meu ombro direito, surge um mini Guigui com um collant vermelho, um par de chifres, rabinho e portando um exuberante tridente. Olho sobre meu ombro esquerdo, procurando pelo par maniqueísta com sua voz de sabedoria e acho um punhado de caspas.
Aceitei resignado. Estava com fome mesmo! “Que mal pode fazer?”. Amigos, se tem uma lição que a vida me ensinou é “nunca subestimem o mal que as coisas podem fazer.”
Como eu nunca comunguei, a ideia era copiar os gestos daqueles que estariam ao meu lado na fila, os mais experientes no rolê. O objetivo era passar despercebido: receber meu pãozinho, forrar a pança e vazar o mais rápido possível.
Observei minuciosamente o comportamento dos demais e, com o perdão do trocadilho, repliquei os atos de maneira impecável. Atuei como o melhor dos espiões infiltrados.
— Amém, seu padre.
Falei como supus que rege a cartilha. Ele jamais suspeitou de mim. O sofrimento começa. Não atentei para o que se faz após levar o pão à boca. Engole, morde, chupa? “Será que comer errado é pecado?”.
Levei o apetitoso quitute à minha boca. Resolvi não fazer nada e deixar dissolver na boca como fosse algodão-doce.
Aqui fica outra importante lição, leitores. Sempre que… Não, pera. Nunca esqueça de… Aliás. Sempre que se colocar no lugar de espião da KGB, observe com atenção o que fazer com o diabo da hóstia depois de por na boca!
Para minha surpresa, o pão não era tão miudinho. Era difícil de colocar inteiro na boca. Sem misericórdia – porque uma coisa que a vida não tem é misericórdia – o destino me pegou desprevenido e me apunhalou ardilosamente.
Ainda no corredor, a pouquíssimos metros do padre e do púlpito, eu me engasgo. Desligam as luzes e me iluminam com um holofote. Minha estrela brilhou.
Não imaginava o quão difícil seria engolir o treco. Uma batalha sangrenta e impiedosa contra o pedaço de pão estava prestes a ser travada.
A hóstia vence a iniciativa e ataca minha boca.
Resisto com bravura. Minha língua responde de maneira inútil e consegue lambuzar umas migalhas.
A hóstia trespassa meus dentes e dribla minha língua com destreza élfica.
Nesse momento, a hóstia ocupa, ao mesmo tempo, minha boca, minha goela e minha faringe.
Não deixo barato e engulo quase um terço da hóstia. Mais uns dois golpes bem sucedidos da minha língua e a vitória era minha.
Pff, ledo engano.
Durante o dançante duelo sem fim, a hóstia se aproveita de um descuido e, num golpe de oportunidade, atinge o biloto da minha garganta.
A úvula balançante ligou o alerta do vômito.
Levei as mãos à boca temendo pelo pior: vomitar em público.
Cerrei fortemente os dentes e disse para mim mesmo: “aqui não, Saravá”.
A hóstia ignorou minha ordem e a batalha tomou proporções colossais. Algumas pessoas ao redor já percebiam o meu desespero. O suor escorria no meu rosto e meu desconforto era latente. Fiquei com medo de passar mais vergonha do que o Ben Affleck em O demolidor/Batman.
Era vida ou morte. Minha honra está em jogo.
Percebo uma lágrima escorrendo sutilmente do meu olho esquerdo.
A essa altura, confesso. Lapsos de resignação corriam em minha mente. O meu semblante já não apresentava mais a serenidade que vocês estão acostumados a ver.
Antes que pudesse tecer mais algum pensamento, como um chicote, uma nova regurgitada rasga uma fresta em minha boca.
Conformado, percebo não haver como vencer essa guerra. Mais uma regurgitada e o vômito se tornaria realidade.
Não estava disposto a correr esse risco e as circunstâncias desfavoráveis impediam um raciocínio claro.
Meu corpo já não era mais meu amigo.
Titubeante.
Cuspo a hóstia.
A vida não perdoa. Meu pesadelo toma vida. Imediatamente, falei pra mim mesmo: “eita”.
O tempo parou, o céu escureceu, trombetas soaram e anjos caíram.
Atônitos, todos olhavam incrédulos para mim. O silêncio dominou o recinto por um instante que durará para sempre.
Pude observar, em câmera lenta, o voo do disco salivado. Rotacionando graciosamente e jorrando respingos de cuspe em todos a sua volta como uma bailarina do Bolshoi.
O tempo parece parar e todos observam boquiabertos a trajetória do projétil. O espanto e descrença rodopiavam no ar ao lado da hóstia e do cuspe. Minha dignidade, no entanto, voava para bem longe.
A hóstia toca o chão e o tempo volta a correr em sua velocidade normal: cerca de um segundo por segundo.
A multidão se revolta e o burburinho de desaprovação é intenso. Ofensas soam indistinguíveis. Flagro desmaios, convulsões e senhorinhas se benzendo incrédulas. Outras, crente que testemunhavam uma manifestação do próprio Pomba-gira (eu, no caso), começam a chorar copiosamente.
Abruptamente, como uma flor verde em um jardim de inverno, o professor de religião brota do chão.
Ele segura com firmeza meu mirrado braço esquerdo e me conduz para fora do corredor da missa. Sem permitir explicação, ouço os seguintes dizeres: “se fodeu”.
O padre – de hábitos higiênicos duvidáveis, diga-se de passagem, não tardou em benzer a hóstia e a condenar para as profundezas de sua garganta.
Ele mastigou, notei. Gostaria de saber disso poucos segundos antes. Mas é meio que covardia, eu já tinha tratado de semi digerir a hóstia.
O boato espalhou sem demora. Minha fama de “adorador do demônio” se alastrou como fogo em palha. Alguns me chamavam de “o enviado do mal”, ou de “aquele que não deve ser nomeado”, outros, simplesmente, de “o anticristo”.
Independentemente da minha alcunha, o boato ultrapassava qualquer barreira física colegial.
Flanelinhas mudavam de calçada ao me ver. A moça da cantina parou de fazer desconto. Alunos e professores evitavam qualquer relação comigo. Nas ruas, as palavras que mais se ouviam eram apocalipse e inferno. Meus amigos, os que não faziam parte do clã de “devotos do satanás”, foram proibidos de interagir comigo.
Foram semanas no exílio social. Agora sei como o Chaves se sentiu quando todos foram à Acapulco.
Solitário, aprendi minha lição. Na próxima vez que eu for comer hóstias sagradas, levarei talheres.