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Relatos De Um Forasteiro

Made in Ceará

17/Jul/2018
3 minutos

Nascido e criado no Ceará. Usufruí das regalias das terras alencarinas nas minhas primeiras décadas de vida. Sim, “branquinho assim”.

Mais tarde, tive a oportunidade de alçar voos para longe de casa. No norte, fui capturado pela a gravidade. O mundo era mais do que aquele lar.

Não hesitei, capei o gato e piquei a mula.

Desnorteado, lutei com determinação para manter as raízes arretadas. Lutei contra os costumes locais para não me contagiar.

Com orgulho, arregacei uma tatuagem de um cordel do conterrâneo Patativa do Assaré, ilustrando a satisfação que carrego por ser o que sou:

Eu sou brasileiro, fio do Nordeste
Sou cabra da Peste, sou do Ceará

Nas conversas com os amigos, costumava soltar gírias cearenses descontextualizadas, só por dizer – assim como neste texto – com a infame intenção de influenciar a piazada.

Não conseguia esconder minha felicidade quando as reproduziam entre si.

Certo dia, reproduzi naturalmente uma gíria não cearense. A frustração e o desgosto tomaram conta de mim. Senti vergonha de mim, mas tentei disfarçar.

“Foi só descuido”, argumentava comigo mesmo. Ledo engano.

Alcei mais alguns outros voos. Acumulei léguas e muitos endereços na bagagem.

Hoje, percebo. É inútil oferecer resistência. Independentemente da minha vontade, não sou mais 100% cearense – aproximadamente 88%, mas quem está contando?

Mesmo que eu volte a morar mais alguns séculos por lá, minha vida não se resumirá ao que vivi no Ceará. Nada apagará os perrengues que vivi em outras paisagens.

Neste exato momento, ao olhar ao meu redor, não é o Ceará que enxergo. E não tem sido por um bom tempo.

Se minhas visitas ao sertão ficam mais espaçadas; as expressões tri legais me escapolem frequentemente; sou capaz de distinguir e reconhecer o sotaque forte e carregado do Ceará; e um cearense não reconhece na minha fala uma das suas, não devo me sentir encabulado. Tenho que saber reconhecer esses sinais.

Esse é o significado do que vivencio diariamente clamando seu lugar em mim. É a marca da minha vida nômade se manifestando, a cicatriz da vida cigana se fazendo presente.

Um dia, minhas peripécias em terras distantes certamente figurarão entre os causos que contarei para os meus netos, ou na minha biografia não autorizada.

Oxente, o que eu posso fazer se, por força do destino, o chimarrão, o feijão tropeiro e o barreado me apetecem cada vez mais? Não há motivo de vergonha nisso.

Não é que a cada dia que se passe eu me torne menos cearense e nordestino. A verdade é que a cada dia me torno mais paranaense, mineiro, gaúcho… brasileiro. Não é nada além de um privilégio reforçar o estereótipo e ser mais um fruto desse trem que é nossa miscigenação.

Isso vai além do querer. É o que eu sou. A mim, cabe aceitar, deixar estar e não arredar. Só deus sabe o que mais me resta.

Por essas e outras, Patativa, com todo respeito, permita-me:

Eu sou brasileiro, piá do Nordeste
Tri cabra da Peste, trem do Ceará

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